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Ricardo Alexandre
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A legitimidade como fundamento de validade das normas constitucionais


Ricardo Alexandre de Almeida Santos
[email protected]

Advogado. Auditor-Fiscal da Receita Federal e professor do Bureau Jurídico – Recife


Constitui característica da evolução humana a mudança dos sistemas de referência em que se pautam as relações sociais. Tal fenômeno convive em simbiose com a ocorrência de momentos em que a inflexível força dos fatos insiste em criar um fosso intransponível entre o difuso conceito de justiça e as normas positivadas no ordenamento jurídico do Estado. A característica mutável e mutante do direito, ortodoxamente admitida pela previsão constitucional de mecanismos para a adequação da legislação positiva à nova situação latente no substrato social, aliada à utilização das diversas e consagradas técnicas de interpretação legislativa, oferece a possibilidade de solução destes problemas sem que se faça uso de providências às quais a exegese dogmática não pestanejaria em atribuir a pecha de invalidade nos seus diversos matizes: a inconstitucionalidade, a ilegalidade, a irregularidade. Entretanto, essa panacéia interpretativa reduz-se a mero placebo quando a celeridade exigida por situações emergenciais torna inócuas as providências possíveis dentro do contexto constitucional deixando à autoridade pública as tentadoras e profanas soluções que florescem no fértil terreno das inconstitucionalidades, notadamente quando o herético ato heróico aparenta ferir mortalmente as sacras cláusulas pétreas.
Para o Direito Público, o estado de necessidade “seria uma razão superior (estado de fato), capaz de justificar, por si só, o descumprimento ou a lesão de uma norma posta, por parte de quem deve assegurar o interesse público: o Governo. Tal estado de fato rompe as soluções jurídicas existentes, por serem inócuas e incapazes de acorrer a tempo as situações de risco deslindadas.”
Quando a norma posta a ser descumprida tem hierarquia infraconstitucional, a solução é bastante simples: com base no princípio do devido processo legal em sua acepção substantiva, sede material da razoabilidade e da proporcionalidade, declara-se a inconstitucionalidade da norma. Mas se a norma em questão é a própria Constituição, a solução do problema parece conflitar com a idéia de supremacia da Carta Magna de forma a impor uma análise mais atenta dos conceitos do dogmatismo jurídico acerca de hierarquia, validade e legitimidade.
Segundo a teoria kelseniana, tanto analisando o direito sobre prisma estático (normas positivadas) como sobre o dinâmico (criação e aplicação dos preceitos), há uma subordinação hierárquica à norma hipotética fundamental segundo um critério de validade.
Dessa forma, o ordenamento jurídico estatal passou a ser a visualizado na forma de uma pirâmide, cujo ápice abriga a norma hipotética fundamental, de onde todas as demais normas do sistema colhem sua validade. Assim, um decreto do Presidente da República tem seu engate lógico, seu fundamento de validade, numa lei anteriormente elaborada pelo parlamento obedecendo, para não ser inválida, os limites materiais e formais impostos pela Constituição.
E a validade da própria Constituição? Como aferi-la? Permitimo-nos, neste ponto, a ousadia de discordar da excelsa e festejada jurista Maria Helena Diniz quando esta afirma que “A norma hipotética fundamental é uma hipótese lógica indispensável para que a ciência jurídica possa considerar o direito como um sistema de normas válidas, sendo que todas as proposições com que a referida ciência descreve seu objeto estão fundadas sobre o pressuposto de que a norma básica é válida.” (Grifos nossos.) . Ora, se o processo exegético de verificação da validade consiste em observar se determinada norma não se incompatibiliza verticalmente com uma outra superiormente posta, certamente é descabida a utilização, para a norma hipotética fundamental, que não tem outra de superior hierarquia como referência, do qualificativo “válida”. Nesse sentido, o elucidante magistério do laureado Tércio Sampaio Ferraz Júnior ao afirmar que, “... a conhecida construção sistemática, na forma de uma pirâmide, do ordenamento jurídico, que culmina numa norma última e fundamental, desemboca no conhecido problema de sua natureza, posto que, se se atribui a cada norma a qualidade de norma válida e se esta qualidade é relacionalmente dependente de uma norma antecedente, certamente não cabe, para a última da série, a expressão válida. Pois esta não tem mais a que se reportar.” Continuando sua preleção o jurista advoga com maestria que, não obstante a racionalidade e operacionalidade dessa visão piramidal do ordenamento jurídico, fundada no conceito de validade de normas que culminam numa norma fundamental coadunar-se com a idéia de soberania una e indivisível, “... o sentido da ‘validade’ da própria Constituição fica, por isso mesmo, ambíguo. Mesclam-se, nesta discussão, conceitos éticos materiais e aspirações formais, E, nessa conceituação difusa, reaparece o tema da legitimidade.” (Grifo consta no original) .
Dando seguimento ao nosso encandeamento de idéias na linha da doutrina positivista, chegamos à surpreendente constatação que o próprio Kelsen, na sua análise da autenticidade constitucional sob a perspectiva técnico-formal, também chega a ilações semelhantes. Ao encontrar-se no topo da pirâmide normativa, frente à atordoante dúvida acerca da natureza da norma fundamental que, em última análise, confere validade à Constituição, o mestre austríaco indaga-se: “Como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas?” Como resposta, o jurista afirma que devemos pressupor a norma fundamental como sendo a seguinte: “devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição” . Dessa forma, temos que a elucidação da questão aponta para a legitimidade dos elaboradores do Excelso Diploma. É a conclusão a que também parece chegar o aplaudido Dalari que, após discorrer sobre a “nebulosa teoria da norma fundamental hipotética”, desde a elaboração da primeira Constituição (chamada de abstrata ou teórica) por membros do povo que “selecionam as normas de comportamento social que consideram fundamentais”, passa pela positivação dessas normas constitucionais pelos órgãos jurídicos (reconhecidos pelo direito) e arremata:
“Como se vê existe aí também um critério para aferição da legitimidade, que impõe o confronto entre aquilo que foi positivado, ou seja, que tem a forma de Constituição, e o que existe na consciência do povo, decorrendo da norma fundamental hipotética, que é, em última análise, o conteúdo material da Constituição” . (Grifos nossos).
Não é de difícil digestão a conclusão que, até a corrente dogmática tende a admitir, mesmo que não o faça expressamente, que a validade da Carta Constitucional é inseparável da legitimidade do seu conteúdo material; e, para não desatender à norma fundamental hipotética pressuposta (“que os comentadores da teoria kelseniana entendem que deva ser identificada com a própria idéia de justiça” ), tal conteúdo deve coadunar-se com os princípios, as normas de comportamento e a idéia de justiça, que estão latentes no seio da sociedade, em consonância com o difuso juízo de bem-comum.
Existe, também, uma outra nota distintiva entre a validade e a legitimidade. Essa diferença reside no critério de aferição temporal: ao aferirmos a validade, devemos utilizar um “procedimento retrospectivo”, verificando, com base em silogismos, a validade da norma que oferece o fundamento de validade para o preceito sob exame, num processo contínuo até chegarmos à Constituição. Já para aferirmos a legitimidade desta, devemos utilizar o “critério prospectivo” em que não procedemos “partindo de problemas, perguntando sobre pressupostos; mas sim, indagando as conseqüências” Dessa forma, “...nenhuma constituição se legitima na sua incidência se esta manifesta, no caso concreto, uma injustiça”.
Ora, se os estudiosos da Teoria Geral do Estado são uníssonos ao afirmar que a finalidade precípua do Estado é o bem-comum, seria legítimo tornar esse desígnio inconsecutível em nome da dogmática constitucional vigente? Rudolf von Ihering, citado por Maria Helena Diniz tem uma resposta um tanto perigosa a essa questão. Para ele, “...Se a sociedade não pode subsistir sob o regime jurídico dominante numa determinada época, e se o direito se mostrar ineficaz para manter a sociedade de forma adequada, a força entra em ação abrindo caminho para uma nova ordem jurídica, que se mostre como meio idôneo e apropriado para realizar aquela finalidade.”
É natural, válida e pertinente uma certa precaução ao analisar o assunto, afinal foi muito árduo o caminho trilhado pelo movimento constitucionalista em busca de uma corporificação positiva das normas que regem o funcionamento do Estado, do procedimento para sua elaboração e de mecanismos que lhe garantissem a certeza e segurança. Entretanto, a utilização quase-litúrgica dos métodos apregoados pela escola exegética não se coaduna com a velocidade das mudanças verificadas no seio da sociedade. A hermenêutica tem de evoluir ao ponto de evitar uma verdadeira “Revolta dos fatos contra os Códigos”, parafraseando o título de um famoso panfleto de Gaston Morand, citado por Maria Helena que, com propriedade arremata: “As descobertas da ciência moderna, que modificaram até mesmo a noção de liberdade humana, e as conquistas extraordinárias da técnica, determinaram a alteração da vida humana. Novos fatores econômico-sociais fizeram surgir novas condições de vida social; conseqüentemente, operou-se a mudança do sistema de referência. Velhos problemas já resolvidos hão de exigir soluções novas e novos problemas jamais cogitados hão de surgir, requerendo uma solução jurídica imediata... Deveras, a extraordinária exuberância da vida não cabe nos limites de um Código ...Daí as sábias palavras de Recaséns Siches: “Uma lei indeformável somente existe numa sociedade imóvel".

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1 RAMOS, Carlos Roberto, Da Medida Provisória,, Belo Horizonte, Editora Del Rey, 1994, p. 27

DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 9ª ed. atualizada, São Paulo: Saraiva, 1997
p. 1290

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia, São Paulo, Editora Atlas, 1989, p 20 ss

KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, [tradução João Baptista Machado], 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 225.

DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado, 19ª ed., atualizada, São Paulo: Saraiva, 1995, pp. 171 e 172.

DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit. p. 171.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio, op. cit. pp. 26 ss.

DINIZ, Maria Helena, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 9ª ed. atualizada, São Paulo: Saraiva, 1997 p. 59.

DINIZ, Maria Helena, ob. cit. p. 57



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