As técnicas de incorporação
constitucional do direito de necessidade
Ricardo Alexandre de Almeida Santos
[email protected]
Advogado.
Auditor-Fiscal da Receita Federal e professor do Bureau Jurídico
– Recife
A tentativa de normatização do direito de necessidade
tem o nobre objetivo de evitar as chamadas rupturas constitucionais
que “traduzem-se na quebra de certas normas da Constituição
para os casos excepcionais, permanecendo o texto em vigor para
os restantes casos” .
Como a Constituição é anterior aos poderes
constituídos, e estes a ela devem-se conformar, a ruptura
configuraria uma agressão a que dogmática tradicional
atribuiria o vício de nulidade, por incompatibilidade vertical.
Entretanto, quando a força dos fatos insiste em criar uma
incompatibilidade entre a necessidade de conservação
viável do Estado com segurança para os seus cidadãos,
e as exigências impostas pela Carta Magna, temos que, no
mínimo repensar nossos valores. Aparentemente, os estudiosos
do Direito Constitucional preferem uma célere ação
“por baixo dos panos”, e ao arrepio dos seus próprios
ensinamentos, a se filiar a uma corrente doutrinária que
admita a legitimação dos atos porventura praticados,
a ilegitimidade incidente das conseqüências da fria
aplicação de dispositivos formalmente constitucionais,
ou, até, a existência de cláusulas supraconstitucionais
da exclusão da ilicitude constitucional.
Temos como certo, porém, que a idéia de incorporação
constitucional do direito de necessidade é a que mais se
coaduna com o sentimento constitucionalista e com o princípio
democrático, por conferir maior segurança jurídica
e impedir o uso abusivo de permissivos doutrinários por
parte de autoridades mal intencionadas. É em busca da consecução
desses desideratos que os Estados adotam um sistema constitucional
de crises considerado por Aricê Moacyr Amaral Santos, citado
por José Afonso da Silva “como o conjunto ordenado
de normas constitucionais, que, informadas pelos princípios
da necessidade e da temporariedade, têm por objeto as situações
de crises e por finalidade a mantença ou o restabelecimento
da normalidade constitucional” .
Segundo Canotilho , em termos de direito comparado, a constitucionalização
do direito de necessidade pode seguir um dos seguintes padrões
básicos:
a) Nenhuma ou leve referência constitucional às situações
de necessidade – a Carta apenas indica os órgãos
responsáveis pela adoção das providências
que se fizerem necessárias para o restabelecimento da ordem.
Como a necessidade gera a ação, e os fatos tornam-se
senhores dos atos, entendemos que tal padrão é extremamente
eficiente e perigoso. Eficiente por afastar a sensação
de culpa resultante da ingrata decisão de a quem entregar
a tábua de salvação - ao direito positivo
ou à justiça - possibilitando uma decisão
mais célere e livre das crises de consciência jurídico-dogmáticas.
Perigoso, por poder ser utilizado como uma porta aberta à
prática de arbitrariedades, se o mecanismo de freios e
contrapesos não funcionar bem. Como exemplo, temos a Constituição
dos Estados Unidos “em que a maior parte dos poderes exigidos
por situações de emergência se baseiam nos
chamados implied and inherent powers ou na cláusula geral
dos poderes de guerra”;
b) Adoção de uma “cláusula de plenos
poderes” ou “cláusula de ditadura” –
as providências ficam ao talante do executor. Sendo assim,
os mesmos comentários feitos na “letra a”,
sobre eficiência e perigo permanecem não só
válidos, como ampliados uma vez que, a existência
de permissivo constitucional expresso para que o poder executivo
sobreponha-se a toda a ordem jurídica, adotando, ao seu
arbítrio, todas as medidas que julgar necessárias
para o restabelecimento da normalidade, é um cheque em
branco que pode-se tornar a salvação de uma nação,
ou, sob outro ângulo uma arma antidemocrática, perigosíssima
e de conseqüências imprevisíveis. São
exemplos o art. 16 da Constituição francesa de 1958
e o art. 48 da Constituição de Weimar ;
c) Regulamentação das situações de
necessidade com a fixação das medidas cabíveis,
dos seus limites e efeitos e das competências para sua adoção
– chegamos agora ao extremo oposto: o legislador constituinte,
no afã de preservar sua obra contra qualquer agressão,
tornando-a imune a toda e qualquer circunstância, tenta
ser exaustivo, normatizando todas as situações de
risco que julga possíveis. Apesar de conferir as necessárias
garantia e segurança jurídica, matando a sede dogmático-positivista,
tem a desvantagem de, diante da dificuldade prática de
um arrolamento exaustivo e analítico das situações
passíveis de suscitar emergência, possibilitar o
aparecimento de uma situação não prevista
que pode dar azo a uma ruptura constitucional. “É
o modelo adotado pela Constituição Portuguesa de
1976 (art. 19), a Constituição de Bonn, segundo
a Grundgesetzanderung de 1968 (art. 115 ss.) pela Constituição
sueca (parágrafo 50 da “forma de Governo de 1809”),
pela Constituição espanhola de 1978 (art. 116) pela
e pela Constituição brasileira de 1988 (nos arts.
136 e 137)” .
d) Fixação de “prerrogativas” a favor
do Executivo com posterior ratificação dos atos
pelo parlamento – é o exemplo classicamente oferecido
pelo direito constitucional inglês onde, por intermédio
do Act of Indemnity ou Indemnity Bill , o Parlamento Britânico
legaliza a atuação governamental, desconsiderando
sua responsabilidade penal ou civil pelos atos praticados durante
o estado emergencial. Como sabemos, a Inglaterra é um Estado
onde vigora o direito constitucional consuetudinário em
que não há um documento solenemente aprovado, escrito,
denominado Constituição. Suas disposições
constitucionais encontram-se em normas esparsas consolidadas pela
tradicional democracia inglesa. Não há que se falar
em rigidez constitucional, nem tampouco em limitações
formais ao poder de reforma (dada a ausência de hierarquia).
Sendo assim, a técnica de conferir permissivos em favor
do governo em caso de necessidade e sob condição
da ulterior homologação pelo Parlamento Britânico
adapta-se com perfeição ao sistema, uma vez que,
em Estados de direito costumeiro há “uma permanente
manifestação constituinte” fazendo com que
a ratificação Parlamentar tenha força legitimante
para imunizar os atos porventura praticados.
Como vimos, no Estado brasileiro, como na maioria dos casos, a
Constituição tenta prever as providências
excepcionais a serem adotadas no afã de solucionar problemas
tidos como de resolução inadiável. Perquirindo
o ordenamento jurídico-constitucional brasileiro em busca
das soluções encontradas quando deparado com situações
emergenciais, encontramos alguns casos que merecem destaque.
Na esfera tributária, uma das mais importantes garantias
dadas ao contribuinte é a proteção contra
a repentina instituição de tributo, proteção
essa que visa à prévia adaptação do
orçamento do particular em face de uma nova exação
ou do agravamento de uma já existente. Tal direito, que
a doutrina chama de princípio da anterioridade, é
assegurado no art. 150, III, b do Diploma Excelso. Entretanto,
a própria Constituição o ressalva, quando
justificada pela força dos fatos. Dessa forma, pode a União
instituir, para imediata cobrança, os impostos extraordinários
de guerra (art. 154, I, b) e os empréstimos compulsórios
para atender a despesas extraordinárias decorrentes de
calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência
(art. 148, I). Além disso, defendemos a idéia que
até o princípio da estrita legalidade sucumbe frente
a tais situações excepcionais possibilitando a instituição
dos indigitados tributos mediante Medida Provisória, indo
de encontro à dois dogmas da doutrina tradicional que considera
a matéria tributária e a constitucionalmente reservada
à lei complementar terrenos vedados à regulação
através de MP .
Continuando nossa investigação, verificamos que
até o dogma da divisão de poderes que, através
da obra de Montesquieu, incorporou-se ao constitucionalismo como
conditio sine qua non para a garantia das liberdades individuais,
passa por uma releitura quando a excepcional importância
e a ingente gravidade dos fatos se impõem. No Brasil, a
Constituição Federal, em seu art. 62, com redação
dada pela Emenda Constitucional n° 32, de 11/09/2001, estatui
que “em caso de relevância e urgência, o Presidente
da República poderá adotar medidas provisórias,
com força de lei, devendo submetê-las de imediato
ao Congresso Nacional”. Não obstante o fato de a
medida porventura adotada só se tornar lei em sentido estrito
após o crivo do parlamento (a quem, originariamente, na
clássica tripartição de poderes, compete
com exclusividade a elaboração de leis), é
de mediana clareza que há, durante o período que
antecede a conversão, uma inovação da ordem
legal por ato de exclusiva competência do Presidente da
República .
Finalmente, é imprescindível ressaltar as mais diretas
tentativas de constitucionalização do direito de
necessidade do Estado: inserido no Título VI (“Da
Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”),
encontramos o Capítulo I cuja rubrica é “Do
Estado de Defesa e Do Estado de Sítio” onde são
insculpidos permissivos para a instauração de uma
legalidade extraordinária em virtude de situações
de exceção.
____________________________________________
CANOTILHO,
José Joaquim Gomes, Direito Constitucional , 5 ed. Coimbra:
Livraria Almedina, 1991, p. 1141.
SILVA, José
Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 14ª
edição revista, São Paulo, Editora Malheiros,
1997, p. 693.
A classificação e os respectivos exemplos acerca
da incorporação constitucional do direito de necessidade
estatal constante deste tópico são baseadas na obra
do jurista português, cfr.: CANOTILHO, José Joaquim
Gomes, op. cit. p. 1153 ss.
Por marcante e oportuno,
transcrevamos a tradução de tais dispositivos:
Art. 16 da Constituição da V República Francesa:
“Sempre que as instituições da República,
a independência da nação, a integridade do
seu território ou a execução dos seus compromissos
internacionais forem ameaçados por forma grave e imediata
e o funcionamento regular dos poderes públicos constitucionais
for interrompido, o Presidente da República adotará
as medidas exigidas pelas circunstâncias, após consulta
oficial do Primeiro Ministro, dos presidentes de ambas as câmaras
e ainda do Conselho Constitucional”.
Art. 48 da Constituição de Weimar: “Se no
Reich alemão houver alteração ou perigo grave
da segurança e ordem pública, o presidente do Reich
pode adotar as medidas necessárias para o restabelecimento
da segurança e ordem públicas, intervindo, em caso
de necessidade, com o auxílio das forças armadas”.
Os exemplos foram
retirados de CANOTILHO, Joaquim José Gomes, op. cit., p.
1154. Observe-se que o autor considerou, no caso brasileiro, como
direito de necessidade, apenas a adoção da legalidade
extraordinária com a decretação do Estado
de Sítio ou do Estado de Defesa; numa acepção
mais restrita que a seguida por este trabalho onde também
consideramos como tal, a possibilidade de quebra de princípios
constitucionalmente garantidos em face da necessidade imperiosa
dos fatos como, por exemplo a edição de Medidas
Provisórias em caso de relevância e urgência
(art. 62 da Constituição Federal) e a intervenção
de um ente da Federação em outro.
TEMER, Michel, Elementos
de Direito Constitucional, 13ª ed. rev. e atualizada, São
Paulo: Malheiros Editores, p. 30.
Note-se que
a CF exige expressamente no caput do seu art. 148 a utilização
de Lei Complementar para a instituição de empréstimo
compulsório. Entendemos, entretanto que a adoção
do moroso processo legislativo comum para a produção
de tal norma não se coadunaria com a manifesta exigência
de celeridade imposta pela calamidade pública, guerra externa
ou sua iminência. Quanto ao quorum diferenciado necessário
para a aprovação de uma lei complementar, vislumbramos
a possibilidade de solucionar o problema simplesmente exigindo
aprovação por maioria absoluta quando da votação
da respectiva lei de conversão. Nesse sentindo, admitindo
a veiculação de matéria constitucionalmente
reservada à Lei Complementar, por Medida Provisória
cfr.: MACHADO, Hugo de Brito, Curso de Direito Tributário,
8 ed., São Paulo: Malheiros Editores, p. 57 ss., SZKLAROWSKY,
Leon Frejda, op. Cit. p. 58.
Sobre a edição de Medidas Provisórias frente
ao princípio da separação de poderes cfr.:
SZKLAROWSKY, Leon Frejda, Medidas Provisórias, São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, pp. 13 ss.; RAMOS,
Carlos Roberto, Da Medida Provisória,, Belo Horizonte:
Del Rey, 1994, pp. 65 ss.