|   NOTÍCIAS   |  EDITORIAL  |   ENVIAR ARTIGO  |   EXPEDIENTE   |   LINKS   | 
.



 

LEIA OUTROS ENSAIOS

Ricardo Alexandre
A legitimidade como fundamento de validade das normas constitucionais

As técnicas de incorporação constitucional do direito de necessidade

Supremacia constitucional e estado de necessidade – a legitimação da inconstitucionalidade





   

Supremacia constitucional e estado de necessidade – a legitimação da inconstitucionalidade


Ricardo Alexandre de Almeida Santos
[email protected]

Advogado. Auditor-Fiscal da Receita Federal e professor do Bureau Jurídico, Recife.

Apesar de ser a mais democrática técnica de evitar rupturas, é manifesta a dificuldade de preverem-se constitucionalmente todas as situações emergenciais que podem vir a afligir determinado Estado. Se uma norma, buscando atingir e exaurir tal mister, fosse analítica ao ponto de ser casuísta, certamente um sem-número de situações imprevisíveis poderiam ficar sem a solução jurídica adequada. Em contrapartida, se a norma fosse excessivamente principiológica, subjetiva, com a determinação dos casos de exceção ficando ao talante de algum dos poderes constituídos (normalmente o Executivo, por estar mais próximo aos fatos), teríamos uma verdadeira ditadura civil constitucionalmente justificada; um terreno fértil para o florescimento de arbitrariedades. Partindo dessa dificuldade de positivação das situações constitucionais de crise, quais as providências possíveis de serem adotadas quando determinada situação, não prevista na Carta Constitucional, põe em risco a existência viável e sustentável do Próprio Estado ou a segurança de seus concidadãos?
A história é rica em exemplos de momentos onde a força dos fatos justificou a adoção de atos e normas formalmente inconstitucionais analisemos alguns deles. Comecemos pela própria Constituição de 1988, entremos na máquina do tempo e retroajamos a sua gênese. O poder constituinte originário, responsável pela instituição do novo Estado brasileiro através da elaboração da Constituição, foi convocado por um ato do poder constituinte derivado cujos poderes foram-lhe atribuídos por “outro” poder constituinte originário, aquele responsável pela elaboração da Constituição de 1967/1969. Estranho, não? Tentemos explicar. O ato de convocação da Assembléia Nacional Constituinte responsável pela edição da nova Carta foi a Emenda Constitucional n.º 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição Federal de 1967/1969. Tal emenda disciplinou a composição, os procedimentos, quorum, enfim, tudo o necessário para a elaboração de um novo Diploma.
Como bem frisou Michel Temer, “As Constituições se pretendem eternas, mas não imodificáveis” . Todos sabemos que o poder constituinte derivado detém a elevada função de adaptar os preceitos da ordem jurídica às novas realidades fáticas. Visando a resguardar a essência ideológica da obra produzida, o legislador constituinte originário tornou defesa à ânsia reformista a tentativa de modificação de parcela do texto constitucional, qualificando-a como intangível. Existem, segundo a mais abalizada doutrina, limitações explícitas e implícitas ao poder de reforma. Aquelas, na atual Carta, são as constantes no art. 60, §4º (Na Constituição dos militares – 1967/1969 –, ver art. 50, §1º), e estas, são as que, por razões lógicas têm de receber a nota de imodificabilidade, sob pena de se tornarem inúteis as limitações explícitas.
Em face do exposto, torna-se inevitável o questionamento: se, para alterar determinados dispositivos da Constituição, o poder reformador deve submeter-se às limitações estatuídas pelo poder constituinte originário, ser-lhe-ia lícito inserir no texto da Constituição um dispositivo cujo escopo é aniquilar, com data marcada, toda a obra? Será que quem não pode o menos pode o mais? A criatura pode revoltar-se e estraçalhar o criador?
Entendemos ser manifesta a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 26/85. Mas, quais as conseqüências disto? Alguém detentor de legitimidade ativa estaria disposto a propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade argüindo a inconstitucionalidade, a inexistência, a nulidade de todo o texto constitucional de 1988? Parece-nos óbvio que a resposta é um sonoro NÃO. Por que? Porque o direito não deve ir de encontro aos fatos, mas ao encontro deles. A Constituição de 1988 é a corporificação jurídica dos anseios libertários e democráticos da sociedade brasileira recém egressa da ditadura militar. Apesar da aparente contradição da assertiva, se analisarmos nossa Constituição cidadã, sob as linhas de raciocínio acima adotadas, sua legitimidade e sua inconstitucionalidade seriam notórias. O que fazer então? Atacá-la? Nunca! Escondamo-nos sob o manto da omissão que, somada à indefectível força do tempo, têm o apanágio de alhanar tais filigranas acadêmicas. Todavia, não percamos a oportunidade de apreciar a bela sinfonia protagonizada pela eloqüente força dos fatos perfeitamente harmonizada com o silêncio retumbante de nossas autoridades.
Tal exemplo de inauguração de uma nova ordem constitucional, mesmo com os aludidos vícios formais, certamente é o menos doloroso e mais adequado ao status de animais racionais e seres inteligentes com que são congratulados os integrantes da raça humana, encontrando diversos outros precedentes no direito comparado. Mas, para não restar a falsa imagem de que a agressão à Constituição, quando a força dos fatos a exige, é invenção do subdesenvolvimento tupiniquim, viajemos ao berço da democracia, a um dos baluartes do sentimento constitucionalista: os Estados Unidos da América.
Vinte e quatro de outubro de 1929, a quinta-feira negra, aparentemente o crepúsculo do radiante american way of life. O capitalismo liberal encontra o cume da sua crise. O governo precisa intervir. Posteriormente, o Partido Republicano perde as eleições para os democratas. Franklin Delano Roosevelt é eleito como o salvador da pátria e, inaugurando uma nova fase na história americana instaura o dirigismo econômico através de um novo plano: o New Deal.
O New Deal, constituiu-se num conjunto de medidas de caráter financeiro, de combate ao desemprego, de ampliação da cobertura da Seguridade Social e de incentivo à agricultura, à indústria, e ao comércio exterior. Tais medidas, de constitucionalidade extremamente duvidosa, encontraram, por esse motivo, uma forte resistência da Suprema Corte americana. Entretanto, diante da urgência de adoção de medidas que possibilitassem um alento frente à Grande Depressão, Roosevelt, numa manobra, “procurou contornar e vencer a resistência que a Suprema Côrte ofereceu às suas medidas drásticas para a recuperação do país. Consistia êsse golpe em aumentar o número de Ministros nomeando homens de sua confiança.” Essa “injurídica” (!?) manobra, frente àquelas circunstâncias foi analisada pelo estudiosos da Suprema Corte como a comprovação de uma diminuição gradual de poder de interferência por que passaria o tribunal na fixação dos rumos nacionais americanos, que seriam, cada vez mais, definidos pelo Presidente da República. Mesmo em face da doutrinariamente cristalina inconstitucionalidade da medida, “sob a pressão da proposta presidencial para ‘reformar’ a Suprema Côrte, os Ministros iniciaram o recuo nos começos de 1937. A cessão judicial de poder, então verificada, tem sido interpretada, por muitos, como uma reversão de Hughes e Roberts , resultante do plano presidencial... Há muito mais de verdade nessa afirmativa do que pode parecer à primeira vista.”
É verdade que muitos, temendo retaliações intelectuais dos inconstitucionalistas de plantão, utilizam-se de todas as artimanhas oferecida pela fraseologia para, de forma suaviloqüente mascarar tal postura com um “verniz de constitucionalidade”, acalmando os ânimos dos dogmáticos. Não conseguem, contudo, ocultar as múltiplas inconstitucionalidades verificáveis nessa passagem histórica, cuja legitimidade e adequação ao bem-comum saltam aos olhos pela simples verificação dos seus efeitos.
Como um último exemplo, acreditamos até, que de maior interesse prático, saiamos um pouco do terreno dos fatos e passeemos no campo das especulações de concretização possível.
É de amplo conhecimento que o STF, em recente decisão acerca de pedido de liminar, julgou inconstitucional a cobrança da contribuição previdenciária de servidores aposentados e de pensionistas. O governo pensa em tentar uma nova investida por intermédio de uma Emenda à Constituição Federal. Entretanto, alguns dos argumentos utilizados contra a instituição da exação pela via legal, também podem ser usados para arguir a inconstitucionalidade de uma possível Emenda (por ex. a questão da agressão a direito adquirido). Sem entrar no mérito da questão, suponhamos que seja consolidado o entendimento que a cobrança, independentemente da forma de tentativa de inserção no mundo jurídico, é inconstitucional; consideremos, também, o comprovado déficit atuarial das contas públicas, o aumento da perspectiva de vida do brasileiro, do emprego informal, do desemprego estrutural, enfim o agravamento de todos os fatores que colaboram para uma possível, provável e não muito distante, inviabilidade do sistema previdenciário público brasileiro. Tomando como plausíveis todos esses dados, seria justo deixar de garantir à futura geração (e talvez até à nossa) os benefícios de um sistema previdenciário, para evitar uma “inconstitucional” tributação de inativos e pensionistas e/ou um aumento na contribuições dos servidores ativos? Se a resposta for o tradicional “cubra-se o rombo com recursos do tesouro, o direito adquirido é ‘sagrado’”, lembramos que o Estado não tem uma máquina de fazer dinheiro, tem, no máximo, várias de fazer moeda. Acreditamos que não seria “justo” solucionar o problema utilizando recursos do Tesouro, que, no final das contas já são insuficientes para cobrir as despesas com as débeis saúde, educação, infra-estrutura etc., além da voraz conta de juros da dívida pública, causada, entre outros motivos, pelo próprio déficit previdenciário. Mandar a conta para o erário é socializar um prejuízo causado pelos benefícios de alguns que, é verdade, não têm culpa disso. Infelizmente, entretanto, de uma maneira ou de outra, a conta terá que ser paga. Restará decidir se são mais valiosos a viabilidade econômica e por conseqüência social do Estado ou o princípio constitucional do direito adquirido. Talvez agora, alguém, por desinformação, interesse próprio, orgulho intelectual, ou até, porque os errados sejamos nós, não concorde com “...essas ameaças oportunistas e infundadas de governantes que querrem acabar com...” mas um dia, talvez, novamente a força ingente dos fatos os obrigue a mudar ou agir contra a opinião outrora emitida. Às vezes, basta assumir um cargo executivo e encarar a penúria dos cofres previdenciários para a mudança se operar.
Durante os debates da mais recente reforma, um governador, de um partido de oposição afirmou: “os direitos adquiridos irão matar todos nós”. Outro governador chegou a asseverar: “Se distribuirmos todos os direitos no presente, não deixaremos direito algum para os que vão nascer” . São análises metajurídicas, verdadeiras heresias constitucionais, mas que mostram uma clara realidade: estamos quebrando o contrato de gerações e diferindo uma conta que nossos descendentes talvez não consigam pagar.

____________________________________________

1 Tomamos aqui a expressão “formalmente inconstitucional” não pelo tradicional dualismo entre formal (elaboração de norma consoante o ritual imposto pela Constituição) e material (elaboração de norma com conteúdo não vedado, expressa ou tacitamente, pelo texto constitucional); mas pelo dualismo existente entre direito constitucional formalmente posto vs. princípio supraconstitucional da manutenção do Estado e da segurança de seus cidadãos.
2 TEMER, Michel, Elementos de Direito Constitucional, 13ª ed. rev. e atualizada, São Paulo: Malheiros Editores, p. 34
3 MASON, Alpheus Thomas, A Suprema Côrte – Guardiã da Liberdade, [traduzido por V. L. Schilling], Rio de Janeiro: Record Serviços de Imprensa, 1967, p. 134.
4 Charles Evans Hughes, e Owen J. Roberts eram integrantes da Suprema Corte ocupando os cargos de Ministro-Presidente e Juiz-Substituto, respectivamente.
5 MASON, Alpheus Thomas, op. p. cit., p. 134.
6 As assertivas proferidas pelos governadores estão transcritas na seguinte obra: STEPHANES, Reinholds, Reforma da Previdência, sem segredos, Rio de Janeiro: Record, 1988, p. 187.


Página Inicial